31 de outubro + "Depois da última noite de chuva..." +

+ Cena 1 +

8h da manhã. Só Deus sabe o quanto ela odeia acordar cedo, mas nesse dia já estaria de pé desde as 7:30, terminando de “arrumar tudo”, como ela gosta de dizer.
Tomando seu café bem lentamente, ela, que costumava tomar seu café da manhã inquieta, pensando e planejando o dia, nesta manhã apenas tomava, despretensiosamente, sem planejar demais.

- Mãããããeeeeeeeee!!!!!! Tô pronto!!!!!!!!!

Leonardo voava escada abaixo e corria ao encontro de sua mãe, na cozinha, para engolir alguma coisa e enfim cair na estrada. Largou os pés de pato no chão e a abraçou.

- Meu filho, cuidado. Não entra na água. Lembra a vovó dos seus remédios para gripe e não saia sem agasalho no sereno, entendeu?

Do alto de seus 5 anos, o menino parecia entender muito mais as mazelas do mundo do que sua mãe.

- Entendi mã...

E antes que ele terminasse a palavra ouvia-se o carro de Fernando encostando no portão.
Leonardo correu para porta e pulou no pescoço do pai, que o ergueu e girou. Logo atrás viria Marília trazendo a mala do pequeno.

Desceu o garoto, que já corria para dentro do carro do pai, se entreter com todos aqueles botões no painel.

[Beijo no rosto]

- Oi Má.
- Oi Nando.
- Tudo bem?
- Tudo e você?
- Tudo.

[Pausa]
Havia tanto a dizer, mas era no silêncio que as palavras se encontravam.

- Nossa Má! Caprichou na bagagem, hein?! São só 4 dias!
- Fernando, escuta: ele ta assim, todo alegrinho, mas a noite passada foi daquelas! Passei a noite fazendo inalação por causa da bronquite, então, assim, não quero que ele entre na água. Esse final de gripe pode virar uma febre...
- Sim senhora!
- É sério! E outra, aí na mala tem roupa de frio, de calor e o inalador. Nessa bolsa térmica tem alguns remédios, caso precise. E nessa aqui tem uns lanchinhos que preparei pra vocês comerem na estrada.

[Fernando observa e analisa não a mãe, mas a mulher que havia por trás daquelas palavras]

- Má.... O tempo não passa para você.

Ela abaixa a cabeça e sorri, mas logo volta a realidade, enche os pulmões, ergue a cabeça e olha fixamente para Fernando na tentativa de entender aquelas palavras e dizer algo, mas ele já estava de costas, caminhando até o carro com o resto das malas do filho.

- Tchau mãe!
- Tchau meu amor!

Um abraço e um beijo apertado em Léo e ele voltaria a se entreter com os tais botões.
Fernando voltaria a porta.

- Tem certeza de que não quer vir com a gente?

[sorriso inquieto na face de Marília. Sabia que aquele convite era apenas formalidade, educação]

- Tenho Nando. Tenho sim. Obrigada. Além do mais, eu também vou viajar. Ah! Toma. É o número do chalé onde eu vou ficar no feriado. Qualquer problema com o Léo, me liga, qualquer coisa!

Marília sabia que existia celular para essas coisas! Mas por algum motivo, talvez querendo que ele soubesse onde ela estaria no feriado, lhe deu o telefone do lugar. E era óbvio que Fernando reconhecia todas as jogadas dela (e embarcava em todas, simplesmente por adorar o modo como só eles conseguiam entender tudo aquilo).

- Chalé?! Que coisa mais piegas! Você odeia essas coisas de campo e ar puro!
- Pega Nando.
- Ta! Mas me fala, quem foi a santa amiga que te convenceu a ir pra um chalé?
- To indo com o Roberto.

[Cara de desprezo em Fernando]

- Quem?
- O Roberto... cara do meu trabalho. Já te falei dele.
- Você ainda ta saindo com ele?
- Saindo não Nando. A gente ta namorando.

[Em Fernando, a cara de desaprovação de sempre, em Marília, uma dúvida tentando entender aquela situação na porta de sua casa]

Fernando queria dizer mais alguma coisa. Marília, aflita, não sabia o que pensar. Então, de testas franzidas ele inclinou a cabeça, como se tentasse analisar mais ainda aquela cena que tinha tudo pra ser normal e corriqueira. Mas seguiram sem entender.

[Silêncio]

- Vamô paaaaaiiiiiiiiii!!!!!!

A euforia e ansiedade de uma criança de 5 anos, na véspera do primeiro feriado do ano ao lado dos primos no sítio que ele tanto amava, interrompia toda cena.

+ Cena 2 +

- Quer dizer que sua mãe ta namorando?
- Tá.
- E como é esse tal de Roberto, Léo?
- Sei lá pai!

Entretido com seu MP3, Leonardo ainda era muito inocente pra entender que ele era sua única chance de fazer Fernando entender tudo aquilo. Através de Léo, Nando saberia como era o novo namorado de sua ex mulher, mas Léo estava monossilábico e não fazia idéia de como os adultos eram estranhos.

- Mas ele é um cara legal, filho?
- É. Acho que sim, pai. Desde que mamãe começou a sair com ele, a casa vive cheia de flores e ela sempre desliga o telefone com um sorriso no rosto.
- Ah é, Léo?!

Quem estava monossilábico agora era Fernando.

- É. E toda vez que eles vão sair, ela se arruma, se perfuma e parece uma princesa, igual a dos filmes. Ela sempre desce a escada e pergunta: “Filho, to bonita?” e eu sempre acho que ela está como uma princesa.

Fernando dirigia em direção ao sítio de seus pais e sua testa continuava franzida. Ouvia as palavras do filho e sabia muito bem o que ele queria dizer com “como uma princesa”.

- Pai, ele sempre liga pra ela, eles marcam e ela sobe para se arrumar. Depois ele pega ela, eles saem e ela volta feliz para casa. Porque você não faz isso? Liga pra ela, pai! Daí ela vai se arrumar como uma princesa, vocês vão se encontrar e ela vai voltar feliz pra casa!

Com um sorriso aberto, Fernando olhava o filho pelo retrovisor e admirava toda aquela inocência e simplicidade, natural de uma criança de 5 anos e rogava ao céu que aquela pureza demorasse ainda muito tempo para passar, antes que o pequeno entrasse no cruel e complicado mundo dos adultos.

- Sabe pai, eu não entendo os adultos.
- É filho... nem eu. Nem eu.

+ Cena 3 +

Sentada na varanda que dava para um conjunto de outras casas, todas germinadas, Marília terminava seu suco de laranja com vodka. Suco que ela havia aprendido a misturar, graças a vergonha que sentia em tomar vodka pura na frente do filho, então como disfarce óbvio, misturava ao suco e assim tomaria sem pudores.

Marília nunca bebia na frente de Léo e estar na varanda, mesmo com o pequeno ausente, já era sua mania preferida.

Do lado de fora, ela olhava atenta para o silencio dentro da casa. Era uma casa grande, 3 quartos, sala de jantar, de estar e cozinha bem amplos. Fernando não suportava casas pequenas e quando da separação, o casal achou por bem Marilia continuar na casa, já que em um apartamento pequeno ou numa casa térrea talvez, não poderia levar toda mobília já tão característica a tudo vivido ali.

[Olhar perdido de Marilia, atravessando a sala e fixo na porta principal, fechada]

O dia estava lindo e o céu, absurdamente convidativo. Seria mesmo um pecado seu pequeno Léo não mergulhar e era óbvio que ele entraria na água! Rindo de sua patetice enquanto mãe, lembrava da sua própria e dos conselhos tão manjados.

Ouvia pássaros ao longe e ouvia até demais. Sentada, com os joelhos recolhidos sobre seu colo, se espreguiçava e estendia uma de suas mãos em direção a grade de alumínio que a separava do jardim enquanto olhava sua pele rosada debaixo do sol. Aquele canto da casa era realmente o mais especial e Marilia amava demais o sol pra deixa-lo ali sozinho, iluminando e aquecendo uma varanda vazia. Ficava ali.

Dali 2 horas Roberto chegaria com todo feriado planejado em sua mente e ela adorava aquilo. Adorava se sentir guiada, conduzida, adorava não ter que pensar em nada e deixar que o curso se encarregasse de tudo e Roberto era prestativo, havia feito reservas, planejado e fechado o pacote 2 meses antes. Marilia só se deixava levar. Era uma segurança renovadora e estar ali era definitivamente um santo remédio as dores dos últimos tempos.

+ Cena 4 +

Ao recolher alguns brinquedos espalhados pela sala, Marília notou que havia esquecido de colocar os chinelos de Leonardo na bolsa. Imediatamente pensou em avisar Fernando.

[Léo era a razão mais não óbvia para Marilia e Fernando se falarem. Eles sempre se ligavam para saber como estava o menino, mas o mais óbvio nisso é que aquilo era só uma desculpa. Mas essa era mais uma mania estranha do casal. Aquelas coisas que os dois sabem e entendem, mas fingem que não vêem, como o ocorrido com o tal telefone do chalé]

Mas desta vez Marília não ligaria. Era fato que Fernando logo perceberia que o menino estava apenas com o tênis e logo trataria de comprar um chinelo, sandália, coisa assim. Não era necessário ligar para dizer isso, mas era ela e ela sempre fazia isso. Ligava para dizer as coisas mais banais possíveis ou só pra “avisar” algo ou “lembrar” Fernando de fazer tal coisa para o pequeno. Desculpas. E ele adorava, possivelmente até achasse normal aquilo, visto que fazia igual (não com tanta intensidade, afinal Léo morava com a mãe e como mãe Marilia era realmente ótima). Mas como ela sempre fazia e ele sabia, foi de modo estranho que Fernando encarou aquela não reação.

- Alô?
- Oi Má. É o Nando.

[Apesar do identificador de chamadas, esse era mais um ritual estranho entre eles. Eles sempre se identificavam, não importando quantos anos se passassem e nem o quão aquelas vozes fossem tão inconfundíveis a ambos]

- Oi. Tudo bem?
- Tudo. Má, você esqueceu de colocar os chinelos do Léo na bolsa!
- É eu sei! Eu percebi agora a pouco.
- Percebeu?
- Ah, percebi! Mas deduzi que sua mãe pudesse ter algum perdido no sítio, ou sei la, logo você perceberia e iria comprar algo.

[Silêncio envolto em ruídos no telefone e ruídos na cabeça de Nando]

- Nando?
- Oi Má...
- Oi, então, eu percebi, mas ai pensei que sua mãe....

[Interrupção]

- Má, você percebeu que havia esquecido de colocar algo na bolsa dele e não me ligou?
- Ah Nando! Nem pensei nisso! E pára! Eu nem sou tão neurótica assim!

[Risos]

Apesar da risada, Fernando sabia que algo estava mudando. Marília adorava bancar a mãe perfeita e eles viviam arranjando desculpas para se falar, porque agora seria diferente? Sim, era só um chinelo, mas Fernando sabia o que aquela não ligação queria dizer. Marilia estava tocando o barco e já não ligava mais desesperadamente para Fernando, a troco de nada, pra falar qualquer coisa. E aquilo o assustava.

- Má?
- Oi.
- O telefone ta no viva-voz?
- Ta.
- Tira, por favor. Você sabe que eu detesto.
- Eu to sozinha em casa, Nando.
- Má?
- Oi.
- Tira.

[Humpft! Ela pegava o aparelho e se jogava no sofá]

- Pronto.
- O fone ta perto do seu rosto?
- Sim.

[Respiração forte. Suspiros de ambos. Sim, é mais uma mania estranha... eles adoravam ficar em silencio no telefone, ouvindo um a respiração do outro, ou os suspiros, qualquer coisa. E eram naqueles silêncios que eles falavam mais do que em qualquer outro momento.]

- Paaaaaaaiiiiiiiii!!!!! Já escolhi!!!!!!!
- Má, tenho que ir. O Léo já se decidiu pela cor do chinelo.
- Tudo bem Nando.
- Um beijo.
- Beijo.