30 de março + Cheiro de Neblima +

Sentada, já com um copo na mão, ela lia seu último livro. Havia comprado há duas semanas mas não tinha tido paciência para começa-lo. Julgou aquele momento propício.
Já estava no segundo café e não tinha a menor pressa em termina-lo. Gostava de engolir e ficar com o gosto do café por alguns instantes na boca, senti-lo e só depois, voltar a outro gole.

Dessa vez, não por ansiedade, mas sim por inércia, havido chegado antes do horário combinado, além do que, queria ambientar-se bem ao local escolhido por ele, ficando assim mais segura; Os cabelos estavam soltos e os punhos e colo, cobertos. O frio já não era tão impiedoso, mas sair de manhã ainda exigia certa proteção. Esse foi o modo que Marília escolheu para prostar-se diante de Fernando e ouvir o que ele ‘tinha para dizer’. Sim, afinal, apesar de calado, ao lado dela, punha-se a falar numa velocidade inalcançável para outros ouvintes. Entendiam-se, mas tanto entendimento exigia momentos de silêncio. Momentos estes, talvez, mais impiedosos do que o frio que começava a partir. E dessa vez, ele havia a procurado e a incitado, dizendo ‘aquelas coisas’ que ele sempre diz, e por fim, afirmando que havia ‘algumas coisas’ que ele ainda precisava dizer.

Já passava das 10 da manhã quando o vento ameaçou de leve e balançou a toalha de sua mesa. Ela simplesmente adorava o cheiro das manhãs de domingo. Manhãs, que ela gosta de dizer, tem “cheiro de neblina”. Para Marília, havia algo especial com aquelas manhãs. Ele sabia. Propositalmente havia escolhido aquele local, de modo que Marília, prestando ou não atenção, suavemente sentiria a brisa trazendo o tal cheiro, de neblina, ao seu encontro.

- Não, não, não! De onde você tirou isso Fernando?
- De lugar nenhum, Má. Ou melhor, de todos os lugares. Você fez questão de me mostrar.
- Mostrar? Questão? Ok Fernando. Pode começar a traduzir o seu diálogo porque chegamos naquele ponto clássico onde eu paro de entender o que você pára de explicar.
- Não é questão de explic...
- Nando, pelos céus, pelo amor que um dia houve – e que foi absoluto e intenso – se você for passar o resto da eternidade deduzindo meus ais, morreremos a míngua do nosso amor, os dois.
- Mas o que era aquilo então? Por que tantas vezes quis te dizer tantas coisas e não sabia por onde começar? Não sabia em que mundo te achar. Percebe Marília, você me coloca em situações desoladoras.

Pausa.
Marília fecha os olhos e pisca longamente. Vira a cabeça para o lado como se buscasse fôlego e sem que ninguém peça, chega a mesa outros dois cafés grandes. Marília retoma o olhar em Fernando.

- Quando com a palma levantada me acertou, Fernando, chorei e quis por um instante supor que te odiaria para sempre, mas a mesma palma me acariciou e de joelhos, pediu meu perdão e de renascida, fiz-me tua novamente. Agora não me venha tacar pedras pois eu jurei nunca mais derramar uma lágrima sequer em teu nome, Fernando. Não me acuse injustamente de algo que eu nem cometi.
- Não estou te acusando, entenda. Estou dizendo que para mim estava tudo muito claro. Vi e revi, refiz teus passos, teus cálculos e enxerguei sim, Marília, enxerguei o que de ti consegui ver.
- Ver sem me enxergar, Nando? Supõe que vê, mas a mim não lança nenhum olhar. Vê o que quer ver. E digo mais, vê por que quer ver. Prefere a desolação que encontra em tuas verdades criadas do que a realidade que minha vida te entregaria. Baseia-se na dor de outrora para tomar-te como tua e não vê, enfim, que de ferida também fui eu e que de algum modo tive que aprender a nadar na tua tempestade.

Ouvir da boca dele que ela o colocava em situações desoladoras, a desmoronava. A levava a um estado de consciência vazio, mergulho na escuridão, aquela velha máxima que ela passaria talvez a vida inteira tentando entender. As verdades e os porquês dele, sempre tão imutáveis, suas verdades criadas para se defender.

- Então me mostre afinal teus ais, Marília. Onde esconde tuas preciosidades e porque julga as minhas interpretações tão imprecisas? Mostre onde estou errando quando de ti julgo o que vejo sem te ver. Porque para mim, Má, está sim tudo claro, tudo ali, tudo que é você.

Haveria ali um momento de exaltação, e ela lançaria mão de todo seu discurso, usaria todas as palavras possíveis para se ‘defender’, se ‘explicar’ e de Fernando não obter nada mais do que o já conhecido olhar de reprovação. Exitou. Sentiu novamente o cheiro forte de ‘neblina’ que os enlaçava naquela manhã e quis sussurrar palavras doces em seu ouvido.

Ao contrário de outras vezes, sentiu Fernando por perto. Sentiu por bem mais do que poucos instantes, a presença infinita de Fernando em sua vida e ali se viu segura. Se viu acolhida nos braços dele, independente da situação e muito mais independente ainda do que havia sendo discutido ali.

Como se no silêncio houvesse mais respostas do que nos discursos batidos de ambos, ficaram calados e enfim perceberam a importância daquele momento. Já não havia explicações a dar e nem porquês a entender. Pela grandeza da história em si, maiores explicações virariam meras formalidades aquela altura da vida.

- Fernando, seremos os dois errados se formos analisar todos os passos dados. Não por erros de interpretação, mas pelo fato de que há tempos, nossos passos já não são em nossas direções. Dirigimo-nos a outros mundos. Retiramo-nos de nossos mundos e de lá, seguimos. Olhar para meu mundo com seus olhos não te mostra para onde eu fui, entenda. Mostra apenas onde estou, mas isso não muda em nada quem eu sou e o que sinto. É isso que espero que entenda e carregue com você. Assim como eu carrego.

26 de março + O sono dos anjos +

Abri o livro na inútil tentativa de fugir de mim e de meus pensamentos, que apontavam todos para o recente ocorrido. Impossível.

Comecei lendo os agradecimentos, que eu adoro, mas as vozes estavam altas demais dentro de mim e eu só conseguia pensar mais, abominar mais, indignar-me mais. Até que cheguei no delicado momento em que, mais do que pensar e repudiar, eu estava a um passo de deixar que aquela história me ferisse.

Nesse ponto encarei de frente os fatos, olhei fixo pra dentro e vi coisas quebradas, rasgadas os fragmentos mal passados. Sim, eu estava a um passo de começar a sofrer com aquilo.

Voltei os olhos para o livro. Me deparei - pela segunda vez - com uma frase e fui salva. Pelas mãos de Hosseini veio o "eu vou amar você para sempre", dedicado a sua Roya.

Claro como água me vi novamente diante do que por tantas vezes já estive, mas fugi. Esse tal, pra sempre. A verdade imutável de que amores são ternos e eternos de tempos em tempos me assombra. Fica comigo um tempo e também por vezes, me deixa. Perco a crença “nessas bobagens” por um tempo, mas rapidamente volto a minha essência e vejo tudo ali, todo meu deslavado romantismo e crença total nos amores eternos e puros. No meu amor. No quanto posso ser e fazer por alguém.

E foi só por causa dessa frase tão linda que eu pude me concentrar e segurar “na unha”; não permitir que “aquele” recente ocorrido me ferisse. Os espinhos estão todos por aí, cabe a nós, mais do que desviar, arranca-los de nossos jardins.

Espero apenas, sinceramente, ter forças para não odiá-lo. Não por ele, que não merece nem meu ódio, mas por mim, afinal, preciso seguir em paz e odiá-lo levaria um tempo a mais, que honestamente, não tenho mais.

Juro. Juro que procurei mil formas de fazer isso; rondei meus sentimentos, ignorei o quanto as mágoas me feriram, quis não ser drástica, mas não tem jeito. Só há um modo de fazer isso. Só há um modo de encerrar os ciclos. Encerrando.
rastros de amor, do que já não há
pedaços pelo chão, para me entregar
o que a sua ausência ainda causa em mim
melhor esquecer

25 de março + Para alguém que ainda chora +

Para minha querida, minha amada, minha irmã, minha amiga. Linda, esse é para você. Esse é para o seu pequeno coração. Queria estar por perto, estar mais perto. Saiba querida, daqui estou sofrendo horrores ao te ver assim. Força amiga, força.

Queria mover as nuvens, arrancar do seu peito essa angústia, quebrar todos os pedaços que essa dor vai cavando em você, te trazer para superfície. Queria tantas coisas. Ouça, estou aqui. Escreva e desague o quanto for preciso. Não que haja uma medida para essas coisas, mas enfim. Desague o quanto seu coração precisar.